sábado, 10 de março de 2012

Bakuman - Sobre hipocrisia e valores distorcidos


  Quem acompanha Bakuman sabe que desde o primeiro capítulo o objetivo do protagonista é conseguir se casar com a "donzela em perigo" Miho. No começo tudo parecia muito bonito e fofinho, um casal que só se corresponderia através de sms (o equivalente moderno das cartas de amor) e raras ligações telefônicas, eles só se reencontrariam pessoalmente quando realizassem seus sonhos: Ele se tornaria um mangaká (desenhista de mangá) famoso e ela se tornaria uma seiyuu (dubladora), os dois se casariam quando ela dublasse a protagonista  na versão anime do mangá. Até aí tudo bem, mas o modo como as coisas foram levadas...

  Eu entendo, é um mangá de uma revista shounen, ou seja, tem que ter o aval dos pais e cativar as crianças que leem a revista (mesmo crianças estando longe de ser o público-alvo da revista), o problema é que o mangá idealizou esse amor casto como se fosse a forma verdadeira de amor e forma "certa". Não é segredo para quem acompanha as obras da dupla que o machismo sempre esteve presente e mulheres com iniciativa e que competiam com os homens sempre foram menosprezadas e tratadas como burras (afinal, o principal objetivo da vida de uma garota é parecer fofinha e arrumar um marido para poder cuidar dele, da casa e dos filhos). Um belo exemplo é a colega de classe deles, Iwase Aiko, o Mashiro disse com todas as letras que ela era burra por competir diretamente com os garotos e tirar notas boas, seria melhor para ela se ela agisse "kawaii" como a Miho e disfarçasse a capacidade dela de tirar notas altas, afinal, não é bonito ver uma garota tirando notas altas e competindo com os garotos. O melhor amigo do protagonista e roteirista da dupla era o alvo amoroso da Iwase Aiko, mas ele optou por ficar com a Kaya Miyoshi, nenhum problema quanto a isso, a Kaya era uma ótima personagem, desinibida, ativa, moleca, no começo da série ela ajudava os rapazes a produzir os mangás passando borracha e nanquim nos originais e até teve a iniciativa de escrever light novels (que fizeram relativo sucesso), mas logo que ela se casou com o Takagi e o assunto das light novels simplesmente foi esquecido e ela virou só mais uma puxa-saco da dupla que serve de empregada doméstica no estúdio, afinal uma mulher casada respeitável não pode trabalhar, não é? Ainda mais em algo que envolva  capacidade e criatividade como escrever.


  E com isso o romance em Bakuman sempre ficou em segundo plano, até alguns capítulos atrás quando finalmente decidiram tirar o cabaço do casal protagonista botando eles pra tentar casar (eu acho). Finalmente a dupla Ashirogi Muto emplacou um mangá de muito sucesso e o sonho deles de ganhar um anime vai virar realidade, Azuki Miho seria a dubladora da protagonista (o papel foi escrito para ela), mas eles querem que ela prove a própria capacidade de ganhar o papel através de audições (o que parece um grande progresso em se tratando de Bakuman, mas lembrem-se ela pode lutar pelo papel porque está lutando pelo seu homem, pelo seu direito de casar!!).
  Mas acontece um imprevisto, um ex-colega de escola que é um sujeitinho repulsivo e um otaku maníaco e perseguidor de seiyuus que vaza anonimamente na internet sobre os interesses amorosos da Miho ao mesmo tempo em que uma seiyuu novata e tolinha (ela é mulher, é lógico que ela é tolinha) comenta que uma seiyuu famosa está em um relacionamento com um mangaká da Jump e que ela pelo amor deles.
  Daí então o que poderia ser um belo arco abordando o problema social que são os doentes mentais fanáticos que se chamam de fãs das seiyuus e a perseguição absurda que eles fazem às moças impedindo as coitadas de namorarem, casarem e terem uma vida normal, como se dublar personagens de anime fosse uma espécie de profissão sagrada que apenas sacerdotisas vestais podem exercer. Há quem diga que os maníacos perseguem as coitadas durante o natal (que está mais para uma espécie de dia dos namorados no Japão) para checar se elas estão solteiras e "puras" ou se estão namorando, se o segundo caso for verdade as coitadas sofrem (mais) perseguições, recebem cartas e telefonemas de ódio e essa minoria barulhenta faz de tudo para a popularidade das coitadas caírem.
  Estava tudo indo muito bem no mangá, tudo muito empolgante etc. O Fukuda teve uma participação incrível defendendo o amor dos dois, dando uma bronca nos stalkers loucos que se intitulam "fãs" em um programa de rádio, até a própria Miho entrar em ação, o que começou muito bem terminou muito mal.
  Ao invés da Miho defender seu direito de ser uma trabalhadora com direito a uma vida pessoal (o que inclui  entre outras coisas o direito de namorar, sair, transar com quem ela quiser) ela pede desculpa por aborrecer seus fãs, como se frustrar as ilusões que esses doentes (uma mistura de amor platônico com ilusão de posse do corpo alheio, valores retrógrados regado a muito machismo etc.) têm fosse algo de errado. E assim a possível crítica social se transforma em apoio a esses doentes, afinal, oi mangá está mostrando como eles estão certos, ela tem que pedir desculpas por ter uma vida e amar uma pessoa desde criança, ela não possui esse direito inalienável, esse direito é dos donos dela, como eles compram os cacarecos que a empresa para a qual ela trabalha lança eles têm todo o direito sobre o corpo e sobre as escolhas que ela toma em sua vida pessoal.

  E para piorar tudo os dois conseguem aprovação do grande público quando revelam que ambos são virgens, nunca nem se beijaram e para piorar só se viram ao vivo duas vezes desde o colegial (cerca de seis anos durante a série). Vocês acreditariam em um amor cujas pessoas não se veem e não têm contato? EU NÃO!
  O grande problema é o moralismo, esse tipo de "amor" já seria considerado ridículo desde a revolução sexual, mas infelizmente é isso que eles estão tentando passar para as crianças e adolescentes: sexo é errado, beijar é errado, abraçar é errado, andar de mãos dadas é errado, estar junto é errado, o relacionamento só é correto quando os dois estão longe um do outro e se mantém castos, isso é ser "puro", todo o resto é "sujo". Afinal, um amor "puro" é capaz de tudo, de comover parte desses loucos e mudar a opinião popular. Falta pouco para a conclusão dessa saga, mas não é difícil adivinhar qual será o resultado: o amor "puro" deles vai ser capaz de superar as dificuldades e os dois vão se casar de branco, afinal o amor puro deles como é "superior" vai ser capaz de vencer todos os obstáculos.

  O que fica é que mais uma geração vai crescer bombardeada com esses valores distorcidos acreditando que as garotas têm que se manter "puras" (palavra que o mangá adora ressaltar), sem experiência, sem poder optar pelo que preferem, que uma opção feita no colegial deve durar para a vida toda, que um pedaço minúsculo de carne chamado hímen é o que te faz melhor do que as outras e é isso o que vai te fazer ter uma vida bem sucedida e um final feliz, se você mantiver seu hímen você vai conseguir superar todas as dificuldades, mesmo frustrando as expectativas de desconhecidos que têm fantasias irreais a seu respeito. Amor de verdade não é construído aos poucos, não é construído conhecendo o outro, o corpo de quem se ama ou o próprio corpo, sexo é apenas uma parte desagradável que só os homens têm direito de aproveitar e assumir que gostam. É esse tipo de mangá com esse tipo de discurso nas entrelinhas que faz sucesso e é propagandeado hoje em dia, que faz propaganda de um ideal falido, errado e que qualifica as pessoas por um pedaço de carne glorificando a ignorância em diversos sentidos.

  É muito triste acreditar que mais uma geração vai crescer sendo levada a acreditar que um pedaço de carne determina a pureza de alguém e que esse tipo de "pureza" é algo positivo ao invés de pura ignorância.

Um comentário:

Akano Ringo disse...

Já havia percebido o forte machismo desde de Death Note, embora este apresenta apenas uma figura feminina presente com mais foco. Esses valores são antigos no Japão, é triste saber que embora muitos digam que estamos em nova era os preconceitos ainda continuam vivos e se Bakuman foi o que mais deu a demonstração dos antigos conceitos temos vários outros que nos mostram a figura feminina como sendo fraca e sempre buscando algo apenas por seu amor. Talvez seja por isso que ao passar dos tempos temos comprovado a queda nos mangas e animês, sendo culpado o fato das mulheres serem retratadas de forma sexual e exposta perdendo a qualidade na estória em si. Se por um lado temos a pureza do outro temos o forte sexualismo e os mesmo estão ligados a conceitos velhos de machismo e menosprezo as mulheres. Vocês está correto. O amor é algo que não se cria apartir de olhares, é construido apartir das situações e de se conhecer o parceiro, fora isso é apenas uma paixão superfícial.